Era dia 25 de um Agosto cheio de calor.
Nessa altura eu vivia em Pêro Pinheiro , e
trabalhando em Lisboa, apanhava todos os dias o comboio da linha de Sintra, na
estação da Portela de Sintra para o Rossio, onde apanhava o metro para a
Alameda onde trabalhava.
Era quinta-feira e mais um dia de trabalho, num mês típico
de férias.
Ouvia-se no comboio as pessoas a falar que havia um incêndio
no Chiado, mas não havia alarme, apenas comentários avulsos de gente que já se
conhecia de viagens diárias.
O meu ex saiu em Campolide, onde trabalhava, e eu segui para
o Rossio pelo túnel enorme que ligava as duas estações.
Quando chegamos á estação do Rossio, o primeiro sinal de que
algo não estava lá muito bem foi a estação vazia.
Nessa altura a estação do Rossio era o terminal de todos os
comboios da Linha de Sintra e da linha do Oeste, por isso estava sempre cheia
de utentes e comboios. Nesse dia o comboio entrou numa estação vazia, apenas
com alguns polícias num cais com plataforma dupla (dos dois lados), que mais
tarde percebi ser estratégica para evacuar os passageiros da estação o mais
rápido possível.
Nessa altura a estação do Rossio tinha sido transformada num
grande centro comercial, e nesse dia fomos obrigados a sair pela saída do topo,
onde está a praça de táxis, pois o centro estava fechado e vedado.
A primeira visão que tive foi logo ao sair da estação. O
fumo negro e espesso que tapava o sol, e as bolas de fogo que de repente se
viam, acompanhadas com o som das explosões das bilhas de gás, que subiam aos
céus.
Tinha 20 anos na altura, mas já amava a minha Lisboa onde
nasci, e o meu coração estremeceu e ficou apertado, e fiquei assustado.
Fomos encaminhados para o Rossio, que se tinha transformado
de um grande terminal de autocarros, num enorme parque de carros de bombeiros.
Do Rossio tinha-se uma noção da gravidade da situação, eram
umas 8.30 e o incêndio estava longe de ser dominado, e caminhava Rua do Carmo e
Rua Garrett acima, e lavrava em 3 direcções, Sul, Este e Oeste tendo já chegado
á Rua do Crucifixo. O elevador de Santa Justa, feito de ferro, impediu-o de
descer a rua para sul.
Percebi que parte de minha infância tinha morrido nesse dia,
que aquele Chiado não ia ser mais o mesmo dos meus tempos de miúdo e
adolescente. Nesse dia quase que não se trabalhou em Lisboa, não se conseguia
ir á Baixa, onde estavam a maior parte dos organismos estatais onde eu ia
tratar de documentação para a empresa onde trabalhava.
Até ao meio da tarde temia-se que o incêndio alastra-se á
Baixa e ao Bairro Alto, por isso o centro tinha sido encerrado e a luz cortada.
Foi um dia de angústia.
Mas a sexta-feira ainda foi de mais angústia, bem como os
dias seguintes, quando nos apercebemos da quantidade de área ardida, e do que
se perdeu no grande incêndio.
Chorei, chorei de tristeza por ver a minha Lisboa, o meu
Chiado queimado, destruído, estava de luto, negro, como de luto ficaram os
alfacinhas que amavam Lisboa como eu.
Não se sabe ainda hoje o que originou, ou quem, o incêndio.
Sabe-se que foi descoberto ás 4.40 pelo electricista do
Elevador de Santa Justa, que viu o fumo sair dum buraco de um vidro de uma
montra junto ao chão, o que quer dizer que o fogo começou nas caves, que o
policia de serviço na zona deu o alarme aos bombeiros perto das 5 da manhã, que
os bombeiros chegaram ao local 20 minutos depois, já o Grandela era um todo de
chamas, sabe-se que não conseguiram entrar na Rua do Carmo por causa das
esplanadas e contentores de entulho que atravancavam a rua.
E sabe-se no que deu…
Mais de 1 600 bombeiros combateram o fogo, um faleceu, e
evitaram danos maiores, no que poderia ter sido uma tragédia incalculável na
cidade. As temperaturas atingiram tal ordem que até as grandes vigas que tinham
sido colocadas há pouco tempo para reforçar as fachadas do Grandela e dos
Armazéns do Chiado dobraram como borracha.
Se não houvesse aquela tralha na Rua do Carmo teria só
ardido os armazéns do Grandela, assim foram 18 os edifícios ardidos, outros
tanto danificados pelas altas temperaturas e pela água e 3 mortos.
Tudo isto de pode agradecer ao então presidente da câmara
municipal de Lisboa, Nuno Krus Abecasis, que foi um dos mais destruidores de património que a
cidade conheceu.
Até o vice primeiro-ministro da altura, Eurico de Melo, reconhecia na
comunicação social que se a Rua do Carmo não tivesse aquela tralha o incêndio
teria sido rapidamente dominado.
Passados 25 anos nunca ninguém foi responsabilizado pelo sucedido, não
foi Nuno Abecasis pelo crime lesa património (alem dos edifícios, do rombo na
economia da cidade, acrescenta-se o valioso espólio da Valentim de Carvalho,
perdida para sempre uma boa parte da história da musica portuguesa), nem foram
os donos do Pagapouco, na altura donos do Grandela e dos armazéns do Chiado, e
também na altura presos por fuga ao fisco.
O Chiado renasceu das cinzas com a Fénix, sob a pena de Siza Vieira, um
dos nossos maiores arquitectos. As pessoas voltaram á zona nobre e amada. A
alma é outra, mas sobreviveu á catástrofe.
Mas alguma coisa de aprendeu?
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